Nesta quadra festiva somos bombardeados com imagens de intenso sofrimento vivido por muitos seres humanos que sobrevivem, em palcos de guerra; por outros, que fogem da miséria e da fome, formando longos cordões humanos, e que almejam alcançar a segurança; e ainda, pela recente divulgação dos resultados do inquérito às condições de vida e rendimento dos portugueses em 2022, que revela que vivia em Portugal 1696 mil pessoas (17,0% da população) em situação de risco de pobreza, ou seja, com um rendimento inferior a 551 euros mensais. Estes valores mostram que o risco de pobreza em Portugal aumentou 0,6 %, de 2021 para 2022, vindo a atingir todas as classes etárias conforme mostra a figura 1.
Figura 1 - Pirâmide etária da população portuguesa em risco de pobreza, em 2022
Fonte: Pobreza e exclusão social em Portugal: relatório 2023.
Neste contexto torna-se atual recordar o capítulo XXVI - O Natal dos pobres -, da obra "Os pobres", de Raúl Brandão, publicado em 1906.
Natal.
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há no entanto um grande rio envolto que nunca cessa de correr…
Longe pelos caminhos, através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos…
Os cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o amor de nossas mães.
Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades. Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:
– É hoje o maior dia do ano…
Na lareira arde um canhoto. Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as estrelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor do seu rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram…
Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se extinguindo como um poente, ou como uma alma que vai deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que passou seus dias a sacrificar-se por nós…
– O lume apaga-se…
– Deitai-lhe canhotos.
O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas, vêm escutar-nos atentas.
Os pobres são como os rios. Estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da terra. Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos pobres!… Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição! Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma, abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente, no filho ausente… Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão.
As lágrimas que se choram e se não veem são as melhores: caem sobre a alma.
Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há um cansaço enorme.
A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria. Fora não se ouve rumor: as coisas ingeridas escutam. Põem-se a cismar na mãe que descansa na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam, não têm forças para gritar. Baixinho o velho Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro tragou.
– Se o Senhor também nos levasse…
E Sofia bebendo do mesmo copo:
– Tenha paciência, tenha paciência…
– Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora…
Cuido que não tinha tanto frio.
– Aí tem pão.
– Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse contigo, minha filha, não tinha tanto medo.
– A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as precisões e as lágrimas…
– Tudo se acaba na cova. Chegada a nossa hora, acaba-se também a desgraça.
– Aqui tem o vinho.
Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído, são lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras que a noite escuta, com palavras que a noite leva. Sofia o ampara.
Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam… Ceia de natal! Ceia de natal!… Até as prostitutas se querem lembrar… Moídas de pancadas, têm más palavras, gritos, e um sorriso humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.
Falam! falam!… Parece que a mesma primavera negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e servidas. Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade… Uma começa:
– Ninguém canta?
E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de golfão:
– Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos pés.
– Eu não sei como foi…
– E eu então – continua – foi por fome. O pai estava encarangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu me demorar num recado, partiu-me um braço.
– Pois eu foi assim de repente… – diz outra.
– Ia pela rua fora. Vinha da fábrica, começou a chover e uma lama!… Tinha frio e um homem pôs-se a falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo foi… E a falar, a falar, até me doía o coração! E nunca mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.
– Enganam e nunca mais querem saber.
– A mim minha mãe bem me pregava mas a gente que há de fazer?
– Ontem os soldados puseram-me o corpo negro – diz uma.
E mostra a triste carne magoada, os seios murchos e com nódoas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.
– Quando eu morrer… oh quando eu morrer!…
– Tola!
– Que tem? Tenho ali a roupa apartada.
– A mim, enganaram-me, levaram-me… Eu não sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e punham-me fora… Depois não tinha mais para onde ir…
– Eu cá tive um filho…
Uma que estava calada soluçou no escuro. E como todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.
– Eu tive um filho e pus-me a criá-lo.
Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber.
Quando eu o procurava ria-se. Mostrava-lhe o inocente e ele punha-se a rir.
– Mulheres não faltam, dizia-me. Vai-te! – E a gente fica feia. Vai um dia e disse-me: – Se cá tornas chamo a polícia.
– Eu chorei até não ter mais lágrimas e acabou-se tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele fingiu que não me conheceu.
– E o teu filho era bonito?
– Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se- me o leite de chorar. A gente sempre e mais tola!…Pôs-se muito chupadinho e morreu.
– A Maria já deitou um à roda.
– Eu cá se tivesse um filhinho acho que morria por ele. Não tinha coração para o dar a criar.
– A gente não podemos ter filhos.
– Eu cá era uma inocente. Até me dá riso! Tinha treze anos e foi logo ao entrar para a fábrica. O mestre foi quem me desfrutou. Agarrou-me, mas eu não sabia e pus-me a chorar. – Cala-te! se dizes, vais para a rua! – Abandonou-me, outros vieram… A gente há de cumprir o seu fado.
– Eu cá fui um miminho. Meu pai tinha de seu… Depois tudo esqueci, porque senão a gente morria. Meu pai era muito meu amigo. Era preciso não ter coração para o enganar. Nem ele podia supor mal de mim, nem do outro que entrava na nossa casa. Meu pai era também muito amigo dele e tinha-lhe valido sempre. Ainda me lembro, quando meu pai comigo no colo me dizia: – Tu és o meu coraçãozinho… – Eu sempre tive um colo! Olhai: embalava-me como às crianças. – Falta-te a tua mãe, mas eu sou a tua mãe, queres? – Era uma dor do coração enganá-lo e nós enganámo-lo ambos. E eu bem sabia que ele era casado, mas mentia-me…
– Porque será que os homens mentem sempre?
– Mentia-me sempre, e eu era inocente. Mentiu-me e mentia a meu pai. O pior é que um dia fiquei grávida. Começou o meu castigo. – Vou-lhe dizer tudo.
– Diz – disse ele. Mata-lo. Se queres diz… – Eu calei-me.
– E agora? – Agora… – Eu já lhe não queria, acho mesmo que nunca lhe quis deveras. Foi uma desgraça. Já estava escrito que fosse desgraçada, acabou-se!… Depois não podia esconder o meu erro. Só meu pai não reparava… E ele que me imaginava uma inocente!… Esperai… – E agora? agora?… – perguntei-lhe. Então arranjei com que meu pai me deixasse ir com ele e a mulher para uma quinta. Se vós vísseis! A pobre da mulher! Batia-lhe sempre, tratava-a pior que a um cão.
– Cala-te! e ela calava-se, a pobre. – Fala! – e ela falava.
– O estupor, tu não te calarás! – Ela tinha os cabelos todos brancos e vai eu um dia perguntei-lhe quantos anos tinha. – Trinta – respondeu-me, e calou-se. Fiquei passada. O homem diante dela dava-me beijos para a ver chorar. Dizia-lhe: – Vou dormir com ela, ouves, velha? – E dormia comigo. A senhora não dizia palavra. Chorava e punha em mim uns olhos tão tristes, que faziam aflição. Um dia que ficámos sozinhas, ela disse-me: – A menina há de ser uma infeliz. – Eu chorei; e ela com a mão nos meus cabelos, a fazer-me festas! – Coitada! coitada, que sorte a sua tão negra!… Ainda eu… – Porque não o deixa? – perguntei-lhe. – Já me tinha deitado ao rio se não fossem os meus filhos.
– Ele sempre há desgraças! Às vezes mais vale ser mulher da vida.
– Esperai pelo resto. Tive as dores uma noite no verão, em a gosto, e a pobre da senhora é que me tratou.
Ele levou-me logo o filho. Na outra sala ouvi gritos. Vai e atirei-me pela cama fora, sem saber o que fazia. – Onde está o meu filho? – Fui mesmo de rastos e pus-me à porta a escutar. Eles berravam. – Se falas esgano-te! – dizia o malvado à mulher. – Mata-me! – tornava ela. – Tu queres a minha desgraça? Estorcego-te! – Depois ouvi um grande grito e fiquei como morta. – O nosso filho? o meu filho? – Nasceu morto. – A mulher a um canto chorou. Chorou sempre depois.
– Tinha-o matado, o malvado?…
– Tinha. Afogou-o na latrina. Depois veio a polícia. Esperai… A criada ouvira os gritos. Sabe-se sempre tudo, o diabo tapa dum lado e descobre do outro. Ele fugiu para o Brasil, eu fui presa, e meu pai diante duma ingratidão tão negra – quereis crer? – estalou-lhe o coração. Depois… depois… A gente quando nasce já tem a sua sina escrita.
– E a ti?… Não falas? – perguntam a uma sumida no escuro.
– A mim enganaram-me. Foi há tanto tempo que já me não lembra. Tudo perdi.
– E a tua família?
– A gente não tem família.
Na noite, a um canto do Hospital o velho banco de tábuas puídas, dá-lhe também para cismar. A ventania parou. Duma fresta tomba luar. A treva amontoa-se ao fundo, e, para além, nos corredores abobadados, arde um lampião. Direis que o negrume remexe: pedaços de escuridão destacam-se, escoam-se sem ruído pelas muralhas húmidas e espessas. Mais para o fundo há como um abismo, vala comum de treva empastada. Os gritos redobram; depois, por momentos o silêncio sufoca, como o dum sepulcro.
– Se é luar que cai daquela fresta… – cuida o banco.
– Se fosse luar!
Pela escada vê-se a enfermaria onde os lampiões em fila dão uma claridade triste, que mostra os corpos moldados em branco, caídos nos leitos: parece uma necrópole subterrânea e imensa.
– Se fosse luar… – Há que tempos que não sinto o luar. Era como um ruído branco que me envolvia outrora na floresta. Neva às vezes luar. E havia ainda outras vozes… Sempre se sonha, quando certas noites nascem!
Era diferente… Havia rumor nas folhas e o vento dizia aos ramos histórias acontecidas noutros montes. Há épocas em que o vento traz noivados, ais de sapos, frangalhos arrancados às flores… Se aquela poeira fosse luar… E se o luar se pusesse a correr sobre mim, aquecendo- me como outrora, quando em mim subia não sei o quê de misterioso e forte?
Redobram os gemidos, os estertores, os gritos. Os últimos lampiões apagam-se um a um, como se alguém lhe soprasse. É a Morte seguindo o seu caminho. Sombras esvoaçam. E a cova, negra, toma corpo, vive, mais calada, maior, vala infinita, a que uma luzinha dá alma. E o banco cisma:
– Há que tempos que não sinto em mim a luz da manhã, que traz consigo a vida de tudo o que existe, dos rios, das outras árvores, nem o sol a crescer em vagas de oiro, nem a água verde, melancólica, e tão mansa entre os choupos que parece ir vogando já morta… Sinto-me transido… Transido? Isto é corno fogo, mas trespassa-me de frio. E não há nevão, mas ouço sempre gritos, ais, dores… Oh se fosse luar!… Destas enfermarias corre também um sonho parecido com luar… Será uma fonte?… As fontes! nem te lembres das fontes!… Aqui parece que as minhas fibras mergulham num mar revolvido, que eu ignoro, mas que é feito de gritos.
Baixo a pedra começa também a lembrar-se e àquela hora perdida da noite toda a alma inconsciente do Hospital estremece. Quer recordar, palpita e logo esquece… Os sonhos dos doentes, dos pobres, dos tristes, materializam-se e são como nuvens: são de fogo, são de luar. Sombras aos bandos dissolvem-se, para outra vez se criarem.
– Acho que sempre é luar… E quando havia sol? Torrentes corriam pelo meu tronco, inundavam a minha roupa cascos a e em volta numa poeira azul andava um turbilhão de bichos. Outras árvores flutuavam na mesma poalha e as suas folhas ou eram de sol ou todas de prata. Longe – e que encanto aquela companhia sempre presente e amiga! – o fio do rio chalrava. Folhas caíam e iam devagarinho viajar sobre a água verde. Para onde?… Debaixo de mim, até ao mais fundo das minhas raízes quantas vidas protegi e defendi!… As minhas raízes tocavam na vida!… Às vezes caia um pé de água, mas depois vinham sempre teias de sol, fios de sol, para me enredar – e o sol traz consigo um cheiro a terra e renovo que consola, o hálito dos montes e dos pinheiros meus amigos.
Nas temporadas fúnebres em que a água cai a golfões, a gente concentra-se e fica meio adormecida. Os montes envolvem-se em nuvens, os bichos na terra tremem de frio sob as raízes e as folhas secas estalam e gemem com saudades ao deixarem-nos. Se por instantes se descerra a névoa, os montes são mendigos, com um grande manto remendado. Ao fim da tarde levanta-se dos campos um lindo luar azulado que sobe e se dispersa. É a névoa. Baba de oiro luz na água e os choupos são sombras. Ao longe havia um biombo verde de pinheiros, depois montes, e depois poentes doirados… Porque é que me ponho a pensar e a cismar? Há tanto tempo que dormia! As minhas fibras esta noite estremecem. Há-de ser do luar… Oh se ainda houvesse luar!
As mulheres calaram-se. Não há ruído. Elas próprias sonham. Em torno da mesa, na cozinha saqueada, bebem sem palavra o vinho quente. Algumas pensam decerto num lar e bebem as lágrimas que caem no vinho e o gelam.
– A esta hora a minha mãezinha há de por força pensar em mim… – começa uma.
– E tu porque não foste consoar com ela?
– Punham-me fora! queriam-me lá!… Meu pai, meus irmãos…
– Em minha casa faz-se uma consoada muito grande. Assam-se pinhas no lar, e minhas irmãs pequeninas… oh minhas irmãs pequeninas!…
E sufocada desata de repente a chorar. As outras não se riem como de costume. Só uma, sentindo que iam todas chorar, canta:
Se vires a mulher perdida…
– Raparigas, é o fado… De que serve agora chorar? Ninguém foge ao seu fado.
– À noite a minha mãe aquecia vinho e dava-mo na cama. Sempre a gente é criada para uma vida! Quem adivinha?
– Cala-te!
– Eu era o miminho de todos, eu…
– Só eu nunca tive mãe, de mim ninguém se importa! Acabou-se! Cala-te! cala-te!…
Na escuridão as cinzas que restam num lar fazem tristeza e saudade. Brilham, esmorecem, vão-se apagar: são vidas que se extinguem, a alma da treva que em redor sufoca. Assim o Prédio ao abandono, sob a enxurrada, parecia cismar, como um rescaldo coberto de cinzas. Parara trágico defronte do Hospital, e cansado, tal como um pobre ao fim da vida, contempla o seu destino.
Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm pão e se juntam friorentos em torno dum lume que não aquece; natal dos seres que a desgraça usou… O vinho enregela, o pão é duro, mas resta ainda este lume, que jamais se apaga: – Amanhã! amanhã!…
Que poesia tão triste não vai caindo como um choro sobre aquelas almas de misérrimos, de gebos, de prostitutas, de desgraçados!
Numa trapeira o gato-pingado quer dizer: – Amo-te! – mas foi sempre tão nu que não sabe exprimir o que sente.
Na alma daquela criatura humilde, despida e escarnecida, que tinha medo de sonhar e até de chorar, fizera-se um clarão. Tal o espanto enternecido duma pedra a que uma raiz se apega e que a olha deitar flor na primeira primavera. – Fui eu, apesar da minha secura, pensa o calhau, que a trouxe no ventre.
Sem falar, bebem juntos, ele e a pobre, o mesmo vinho. Ele diz:
– Ambos somos desgraçados e sozinhos.
O vinho que havia aquecido dá-lho com um pedaço de pão. Ela olha-o, tendo sempre crescido por acaso e piedade, rota e triste. Havia pois alguém que a amasse?…
– Bebe.
– É tão bom a gente estar junta.
– Não se tem frio.
– Esta noite, sabes?… Lembro-me de minha mãe… Porque seria que ela me enjeitou?
Fora choram. Ela ergue-se e vê no corredor uma rapariguinha que a mãe pôs fora da porta e que chora e pensa.
– E se eu me deitasse a afogar?
Dá-lhe do seu pão, reparte do seu vinho e, mísera, rota, ressequida, diz, pondo-lhe a mão na cabeça:
– Deus te crie para boa sorte…
Na terra só os pobres sabem ser desgraçados.
Meia-noite! meia-noite!… Para que tudo se crie, para que o pó se transforme em vida, que é necessário? Torrentes de chuva, oceanos de água. Eis a vida… Para que do que é matéria algo de radioso irrompa, que é preciso? Um atlântico de lágrimas.
Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras torcidas, o imorredoiro espírito. Através das idades ele se criou, através da dor veio surgindo. O mundo espiritual é já hoje mais vasto que o mundo material. A dor é a primavera da vida. Para se entrar na vida ou para se entrar na morte há sempre gritos. A dor ara o céu cheio de estrelas e os seres humildes.
Que se cria de tudo isto? Que é que se alimenta no infinito? Destes pobres espezinhados, revolvidos, nascem as coisas eternas – húmus, amálgama, protoplasma, espírito lácteo, com que se constroem os mundos. Na vala comum os seus corpos, cansados de sofrer, são a vida da terra: as árvores, o pão, as formas, a seiva esplendente. No infinito é da sua dor que se sustenta Deus.
Fonte:
Projeto Gutenberg. Os pobres de Raul Brandão (Em linha): Acedido em 26.12.2023. Disponível em https://www.gutenberg.org/cache/epub/20841/pg20841-images.html
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