terça-feira, 4 de julho de 2023

Mário Henrique Leiria (1923-1980)

 MOSTRA

Continuo a ser aquilo que ninguém espera




A mostra - Continuo a ser aquilo que ninguém espera - assinala o centenário do nascimento de Mário Henrique Leiria (1923 –1980) destacando a diversidade da sua produção e partindo das suas próprias palavras e traço.

Pintar, desenhar, agatanhar ideias e procurar coisas introduz este universo pela mão do próprio, através do traço de Auto-retrato e da palavra registada na nota biográfica em carta a Hélia de Medeiros e Joachin Peters. A partir daí vão surgindo composições ficcionais de genologia diversa, em simultâneo com a teorização do pensamento estético patente no 1.º Manifesto do Sobreporismo. Assim se abre caminho à aproximação das Actividades da movimentação surrealista em Portugal, dado que o autor se considera um surrealista anterior a qualquer aparecimento de grupos mais ou menos surrealistas surrealizantes ou surrealistas mesmo (carta a Mário Cesariny e aos outros). A sua produção neste contexto integra Cadavres-exquis com Carlos Calvet e diálogos automáticos, bem como o 1.º Manifesto da Rua da Escola «contra as aves de capoeira» redigido por Mario Henrique com o acôrdo de mais cinco ou registos fotográficos da 1.ª Exposição dos Surrealistas.

O núcleo A chateação continua – porque objectos, colagens, escrita automática, desenhos em estado de libertação, poemas, não-poemas, etc. são mais reais, muito mais absolutamente reais do que qualquer forma exclusivamente plástica (carta a Mário Cesariny e aos outros) – mostra a coabitação entre linguagem plástica e verbal na obra de Leiria. Isto se verifica através da composição de colagens ou desenhos juntamente com recurso à palavra, por vezes tornando-os num só traço - como em Maternidade; ou na produção de composições híbridas, apesar da presença assídua da poesia, como Pas pour les parents, Climas ortopédicos ou Claridade dada pelo tempo.

Pois claro que ainda não morri dá conta do período em que Leiria esteve casado (1958-61) e permaneceu no Brasil. Regressado em 1970, só em 1973 vê os Contos do gin-tonic publicados. A este propósito lê-se em carta conservada no seu espólio: entretanto aconteceu-me uma treta: uma editora (a Estampa) pegou-me num monte de papéis e zás, publicou-me um livro (contos amargos, brutais, cruéis, trocistas, avacalhadores, sei lá) (carta a Abílio – E22/96). Seguem-se Novos contos do gin, republicado em 1978 com o acrescento das Fábulas do próximo futuro registando nesta edição a advertência ao leitor: espera o autor, convicto, que as Fábulas fiquem apenas por fábulas. No entanto, está a pau. Não desiste. Sempre a pau. Estas fábulas vão surgindo dispersas, até então, em jornais («Pé de Cabra», «O Coiso»). Imagem devolvida: poema-mito e Conto de Natal para crianças são publicados em 1975. No ano seguinte, Casos de direito galático. O mundo inquietante de Josela: fragmentos foi publicado, com ilustrações de Cruzeiro Seixas e, em 1979, Lisboa ao voo do pássaro, em co-autoria com João Freire.

Mário Henrique Leiria autodefine-se como um resto definitivamente avariado de homem em zanga permanente, com um riso discretamente amargo de vez em quando e um olho sempre disposto à troça solitária (carta a Luís Amaro) que tem escritos vários acumulados por todos os cantos mas, com grande desgosto da dignidade oficial, não é nada que se preste a tornar os homens mais felizes e mais gordos (carta a Mário Cesariny). Não obstante, o autor destas afirmações revestidas de ironia ácida é o mesmo que faz conviver sob o teto da sua obra o poético dos versos:

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir.
continuando, assim, a ser aquilo que ninguém espera.

Nota biográfica:

Mário Henrique Baptista Leiria (1923 –1980) nasceu a 2 de janeiro de 1923 em Lisboa, filho de Hilda Rocha Baptista Leiria e Mário Leiria. Estudou arquitetura na Faculdade de Belas Artes de onde foi expulso em 1942. 

Com 24 anos, em 1947, expôs as suas composições com Jorge Brandeiro e Nuno Costa na Galeria Instanta. Entre 1947 e 1948 passou por Paris, como comprova a menção de local em alguns desenhos no seu espólio. Alguns deles parecem constituir ensaios para Autoretrato, de 1949, ano em que colaborou na 1ª Exposição dos Surrealistas. Até participar, em 1950, na II Exposição do Grupo Os Surrealistas na Livraria Bibliófila, leciona no Colégio Estremocence. Em 1951 redigiu, juntamente com Cesariny, a folha volante Para bem esclarecer as gentes que ainda estão à espera… Um ano depois, em 1952, através de um Comunicado, expressa a vontade de se separar da palavra surrealista tendo sido, entretanto, apreendido pela PIDE por um curto período.

Na década de 50, Mário Henrique Leiria efetuou uma série de viagens pela Europa e URSS e iniciou a atividade de tradutor tendo dirigido, com Carlos Eurico da Costa, a coleção de ficção científica Escalas do Futuro da Europa-América. Enquanto tradutor utiliza o pseudónimo Alexandre Kleist ou Alexandre S. Kleist, nomeadamente para as obras de Maksim Gorki (pseud.). Após o divórcio de Dietlinde von Hartel (Fipsy), com quem casara em 1958, vai para o Brasil onde se fixou até 1970, ano do regresso a Portugal zangado – e ainda [com] dois dedos que mexem: o indicador direito, o do gatilho, e o esquerdo, o do nariz (carta a Abílio)

Na última década da sua vida, Mário Henrique operou, sobretudo na plataforma periodística, por vezes, sob os pseudónimos Wilson Gazoza e Vovô Gazoza, colaborando nos jornais «República», «O Coiso», «Pé de Cabra» e «Aqui», chegando a dirigir este último. N’«O Coiso» publicou a rubrica culinária O Coizinheiro, coadunando-se com o humor negro da primeira coletânea publicada em 1973: Contos do gin-tonic (Lisboa: Estampa), sendo também a capa da sua autoria.

Apesar da obra pouco extensa e dispersa, Mário Henrique foi um artista que tentou escapar a rótulos. A hibridez existente entre realidade e ficção quase compõe uma biografia fictícia e, por isso, é através das suas palavras que melhor se define, bem como ao universo no qual se insere. É através de um percurso de um lado para o outro onde realidade e ficção se misturam dando lugar à construção de uma figura ímpar, que o autor revela várias profissões exercidas: marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, / construção civil (não, não era arquitecto, carregava tijolo), […] planejador de stands para exposições, encenador de teatro e até director literário de uma editora. Pintor de uns obscuros quadros cheios de bicos e berros de cor, escritor - vago de uns ainda mais vagos contos […] poeta de abstractas poesias surrealistas, incompreensíveis (Um caso sentimental. E22/58).
(BNP)


Local: Biblioteca Nacional de Portugal | Sala de referência - Piso 1

Data: Até 18 de Agosto de 2023

Horário: Dias úteis das 09H30 às 17H30

Entrada livre

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