segunda-feira, 17 de julho de 2023

A fraca qualidade do ar em Portugal

Portugal condenado por estar dez anos sem travar poluição do ar. E as regras vão apertar



Portugal foi condenado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) por não cumprir as regras europeias sobre qualidade do ar ao longo de dez anos. Foi ultrapassado o limite das concentrações de dióxido de azoto (NO2) em Lisboa, Porto e Braga. O incumprimento não foi contestado pelo Governo português. A situação poderá ser corrigida com o acompanhamento da Comissão, mas já vem aí um novo desafio: a União Europeia está a preparar uma revisão da Directiva de Qualidade do Ar Ambiente que vai fazer subir a fasquia.

No acórdão proferido no final de Junho, na sequência de uma acção movida pela Comissão Europeia, o TJUE declara o incumprimento de Portugal não apenas por ultrapassar o valor-limite anual dos níveis de dióxido de azoto, fixado em 40 microgramas por metro cúbico (µg/m³), mas também por não tomar “medidas adequadas para que o período de excedência possa ser o mais curto possível”.

Os dados comunicados pelas autoridades portuguesas mostram que as concentrações de NO2 no ar nas três zonas em questão excederam “de forma sistemática e persistente” o valor-limite anual entre 2010 e 2020, falhando os artigos 13.º e 21.º da Directiva de Qualidade do Ar Ambiente, lê-se na conclusão do acórdão do TJUE.

Em resposta ao PÚBLICO, o Ministério do Ambiente e da Acção Climática confirma que o Governo está “a analisar o conteúdo do acórdão” e vai aplicar, em conjunto com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), “um conjunto de medidas que tenham como finalidade mitigar o valor de NO2 nos três territórios objecto da decisão de incumprimento” do TJUE.

E agora?

Caso o Estado não tome medidas adequadas e consiga cumprir os limites impostos pela directiva — ou seja, se Portugal desrespeitar o acórdão do TJUE —, a Comissão, “a guardiã dos tratados”, terá matéria para seguir em frente com o procedimento por infracção, que pode resultar numa sanção pecuniária.

Apesar de improvável, já que a Comissão prefere adoptar uma abordagem construtiva de trabalho com os Estados-membros, a multa poderia ascender a vários milhões de euros. Mas isto pode levar anos a acontecer.

Por exemplo, Portugal foi condenado em 2009 pelo TJUE por não cumprir a directiva de tratamento de águas residuais urbanas, mas só em 2016 é que, perante a continuação do incumprimento em algumas cidades, o país foi condenado a pagar uma multa de três milhões de euros, somando-se oito mil euros por cada novo dia de atraso no cumprimento da directiva.

Questionado sobre se foi dado algum prazo para cumprir as exigências, o MAAC responde que, “segundo a legislação comunitária, não existe um prazo definido para que a Comissão possa submeter nova acção por incumprimento”, mas o Governo “está extremamente empenhado” em aplicar as medidas necessárias para deixar de estar entre os Estados-membros incumpridores. Em resposta ao PÚBLICO, a Comissão Europeia refere que “ainda não entrou em contacto com o Governo português para dar seguimento a esta decisão específica, mas irá fazê-lo, como é normal.”

Francisco Ferreira, docente de Qualidade do Ar na Universidade Nova de Lisboa, recorda que não é a primeira vez que Portugal é chamado à atenção sobre esta matéria, mas, no que toca a esta directiva (aprovada em 2008), não é o pior aluno: este procedimento foi aberto contra vários países onde a situação é mais aguda, como Itália, Espanha, Alemanha, Grécia ou França, mas estes processos ainda não foram encerrados.

Portugal tem neste momento 12 procedimentos abertos pela Comissão em matérias ambientais, cinco dos quais deram origem a processos no TJUE: além dos dois já mencionados, relacionados com qualidade do ar e do incumprimento da directiva sobre águas residuais urbanas, a Comissão também decidiu levar o país ao Tribunal de Justiça no início deste ano, por não-conformidade da legislação nacional com a directiva sobre avaliação de impacto ambiental, em Julho de 2020 pela má aplicação da directiva sobre ruído (que resultou numa condenação em Março de 2022) e em Janeiro de 2018 pela má implementação da directiva habitats (que também resultou na condenação de Portugal em Setembro de 2019).

Contudo, Francisco Ferreira lamenta a falta de celeridade dos processos. Os alertas sobre concentrações de dióxido de azoto começaram em Maio de 2015 — há oito anos —, quando a Comissão Europeia enviou ao Governo português uma notificação sobre o incumprimento do valor-limite anual de NO2 no ar ambiente nas zonas Lisboa Norte, Porto Litoral e Braga (agora chamada Entre Douro e Minho), enquanto a acção no TJUE foi movida em 2021. Neste meio tempo, “continuou a ultrapassar-se” os limites sem haver consequência, o que é “altamente frustrante”, diz o também presidente da associação ambientalista Zero.

Uma pandemia em “câmara lenta”

Francisco Ferreira alerta ainda para o facto de que, em 2021, a OMS actualizou os valores recomendados sobre a qualidade do ar e a Comissão Europeia já está a preparar os ajustes necessários. Com a ambição de “Poluição Zero” até 2050 que consta do Pacto Ecológico Europeu, a Comissão apresentou em Outubro de 2022 uma proposta de revisão das directivas, fixando para 2030 normas de qualidade do ar alinhadas com as recomendações da OMS.

Com a fasquia a subir, em breve os Estados-membros terão que cumprir valores mais exigentes. No caso do dióxido de azoto (NO2), por exemplo, a proposta da Comissão é que o limite anual passe da actual média de 40 microgramas por metro cúbico — o valor registado em Lisboa em 2020 — para 20 µg/m³. O Parlamento pede mesmo que se siga a recomendação da OMS, de 10 µg/m³. O mais recente relatório sobre poluição do ar da Agência Europeia para o Ambiente, publicado no final de Junho, mostra que em mais de metade das 45 estações de monitorização da qualidade do ar os valores de NO2 contabilizados em 2021 estavam acima dos 10 µg/m³, e sete estão acima de 20 µg/m³. “Se não conseguimos cumprir os limites actuais, ainda mais dificilmente conseguimos cumprir os futuros”, alerta o investigador.

Uma das novidades propostas nesta revisão é garantir que as pessoas que sofram de problemas de saúde causados pela poluição atmosférica tenham o direito de ser compensadas se houver violação das regras de qualidade do ar da UE. Os países europeus deverão também preparar “roteiros para a qualidade do ar”, garantindo uma harmonização dos índices de qualidade do ar na UE.

Em Setembro, o Parlamento Europeu deverá votar um relatório da Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar (ENVI) com propostas de melhorias do plano da CE sobre a qualidade do ar, onde os eurodeputados defendem valores-limite e objectivos mais rigorosos para 2030 para vários poluentes, incluindo partículas (PM2,5, PM10), dióxido de azoto (NO2), dióxido de enxofre (SO2) e ozono (O3), em comparação com a proposta da Comissão.

O eurodeputado socialista Javi López, relator deste processo no Parlamento Europeu (e que vai liderar a delegação que vai negociar as propostas com o Conselho da UE e a Comissão Europeia) chama à poluição atmosférica uma “pandemia em câmara lenta”, sendo urgente “seguir a ciência e alinhar as nossas normas de qualidade do ar com as orientações da OMS e reforçar algumas das disposições da presente directiva”.

Falta de dados e de vontade

Apesar de o incumprimento não ter sido contestado pelo Governo português, o acórdão do TJUE admite que existem lacunas nas medições dos níveis de poluição do Porto e de Braga, algo que poderá ter acontecido por questões diversas, como a localização dos medidores ou até uma possível avaria.

Francisco Ferreira nota que, mesmo que se verifique que os níveis estão em ordem nestas zonas, “não há planos de melhoria da qualidade do ar nem programa de execução” nestes territórios, existindo apenas medidas dispersas, o que, por si só, mostra a falta de importância dada ao assunto.

Já em Lisboa o problema é mais conhecido, mais persistente e mais difícil de resolver, e nem o mote da Capital Verde Europeia 2020 foi suficiente para a transformação. Os níveis registados na Avenida da Liberdade, alerta Francisco Ferreira, “estão piores do que em 2020 e 2021”, que foram “os únicos anos em que, no limite, se respeitou o valor”. “É absolutamente escandaloso”, caracteriza o investigador da UNL.

Este deslize, diz, é “resultado de não haver consenso” sobre as medidas a tomar, com a autarquia a “não assumir as medidas que estão previstas”, como limitar os carros mais antigos e reduzir o tráfego, actualizando as Zonas de Emissão Reduzida. “Estamos mesmo a falhar em termos dessa concretização. As autarquias e Governo não estão a ter capacidade de resposta.”

O caminho, sublinha, não deve ser o de criar proibições sem uma estratégia, mas antes “repensar como é que deve ser o centro da cidade em termos de melhoria da qualidade de vida”.

“A oportunidade fantástica poderia ter sido a pandemia”, nota Francisco Ferreira. As pessoas comentavam como era “fantástico” ouvir os pássaros, não ouvir os carros, ter menos poluição. “Já esquecemos isto tudo”, lamenta, recordando notícias recentes que dão conta de que o consumo de combustíveis rodoviários em Maio cresceu 10% face ao período homólogo anterior, numa “tendência oposta ao que é necessário”.

A solução, defende, são “políticas de redução de emissões a sério” que limitem o uso do carro nos centros das cidades, algo que “começa a ser o grande objectivo de cidades médias e grandes”. Isto não é impossível: cidades como Utrecht, nos Países Baixos, só têm transportes públicos e bicicletas no centro. Mas isto passa por investimento público em transportes públicos de qualidade e por uma mudança quase cultural, já que “as pessoas amam o carro”, comenta Francisco Ferreira.

E terá que passar também por uma abordagem mais integrada, com políticas que combinem a redução das emissões de poluentes do ar ambiente, mas também do dióxido de carbono e outros gases que alimentam o aquecimento global — uma vez mais, voltamos à área dos transportes. “O sítio fundamental para aplicar estas medidas são as cidades.”

Morrer mais cedo por causa do ar que respiramos para viver


Todos os anos, cerca de 300 mil pessoas morrem prematuramente na União Europeia devido à poluição do ar, descrita como “o problema mais grave de saúde ambiental na UE” e causa de “danos significativos aos ecossistemas”. 

No relatório Impactos da Poluição Atmosférica na Europa, os valores para Portugal demonstram que em 2019 a exposição a partículas finas esteve associada a 4900 mortes prematuras; na exposição a NO2, o balanço é de 540 mortes prematuras; e sobre os danos causados pelo ozono (O3) as estimativas somam mais 270 mortes prematuras em Portugal em 2019.

No total, as mortes associadas a estes três poluentes em Portugal passaram de 5830 (em 2016) para 6020 (em 2018), mas agora terá sido possível inverter a anterior tendência de aumento com uma ligeira diminuição da estimativa para 5710 óbitos prematuros em 2019.

Os impactos da poluição atmosférica custam à sociedade europeia, todos os anos, entre 231 mil milhões e 853 mil milhões de euros, segundo dados da Comissão Europeia. 

Segundo a associação ambientalistas Zero, a poluição do ar em Portugal “é responsável pela morte prematura de cerca de 6000 pessoas todos os anos”, estando associada ao surgimento ou agravamento de doenças como acidentes vasculares cerebrais, problemas de coração, cancro do pulmão e doenças respiratórias.

Dados da Agência Europeia para o Meio Ambiente (AEA), divulgados em Abril deste ano, referem ainda que a poluição do ar causa mais de 1200 mortes prematuras anualmente em crianças e jovens menores de 18 anos na Europa. “Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis à poluição do ar porque os seus corpos, órgãos e sistemas imunológicos ainda estão em desenvolvimento”, alerta a AEA.

No estudo é referido que, embora o número de mortes nessa faixa etária seja relativamente baixo em comparação com outras, tal representa uma perda de potencial futuro e uma carga significativa de doenças crónicas, tanto na infância como posteriormente. As funções pulmonares das crianças e o desenvolvimento pulmonar são afectados principalmente pelo ozono e pelo dióxido de nitrogénio a curto prazo e por partículas finas transportadas pelo ar a longo prazo.

Por outro lado, a poluição do ar também explica o diagnóstico de uma fatia de casos de cancro de pulmão em não-fumadores, segundo um estudo recente publicado na Nature. A poluição do ar por partículas finas – presentes no fumo de escape dos automóveis e nos gases dos combustíveis fósseis – pode desencadear a proliferação de mutações preexistentes em células pulmonares, o que leva ao aumento da progressão do tumor, sugere o artigo do qual Charles Swanton é co-autor. Assim, não-fumadores que vivem em áreas muito poluídas têm maior probabilidade de desenvolver cancros de pulmão do que aqueles que habitam zonas com baixa poluição atmosférica.

Texto retirado de:
FLOR, Aline. Portugal condenado por estar dez anos sem travar poluição do ar. E as regras vão apertar. Azul: Público, 16.07.2023. Acedido em https://www.publico.pt/2023/07/16/azul/noticia/portugal-condenado-estar-dez-anos-travar-poluicao-ar-regras-vao-apertar-2056274?utm_source=notifications&utm_medium=web&utm_campaign=2056274 


Sem comentários:

Enviar um comentário