sábado, 23 de dezembro de 2023

O presépio de D. João da Câmara | Conto de Natal


O presépio



Havia  quase  um  ano  que  estava  na  loja,  mercearia  num  bairro  escuro,  em que mal entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tortuosa.

Com  doze  anos,  que  saudades  tinha  da  aldeia,  da  família,  dos  antigos companheiros  de  escola,  dos  cães  amigos  que  ladravam  de noite  a  vigiar  a casa!

Tudo lá tão longe! Ah! Se ele soubesse!...

Pois nem uma lágrima lhe viera anuviar o último adeus, quando a diligência dera volta na estrada e ele vira sumirem-se os choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto do cabeço.

É  que  o  deslumbrava  a  ideia  de  Lisboa,  de  que  tantas  maravilhas  grandes lhe  contavam.  Ainda  agora  partia,  e  já  se  via  de  volta  na  aldeia,  de  relógio  e cadeia  de ouro,a  falar  de  alto,  a  puxar  o  bigode,  a  dar  enchente,  como  o Januário, que lhe arranjara o lugar.

Com  o  seu  examezinho  de  instrução  primária,  marçano  de  uma  tenda... Não, que os pais não o queriam para cavador.

Tinham  sido  consultados  o  mestre-escola,  o  prior,  o  senhor  Freitas, lavrador  muito  importante  que  arrastava  tudonas  eleições,  o  Custódio, velhote de muito bom conselho, e todos se tinham mostrado de acordo: não havia  como  Lisboa  para  fazer  um  homem.  Era  ver  o  Januário  que  tinha casado com a viúva do patrão. A loja era de um cunhado dele, bom homem, áspero mas bom homem. Os olhos baixos do Manuelzito, fitos no chão, viam no  tijolo  resplandecer  auréolas,  que  giravam  como  o  fogo  de  vistas  pelas festas.

Ah estava, havia quase um ano; e no desvão da escada, onde às dez horas o mandavam  deitar,  a  morrer  de  calor  no  Verão,  no  Inverno  a  morrer de  frio, punha-se a rever os campos e a casa deixados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios pelas faces.

Os primeiros dias tinham passado muito lentos.

A conselho do Januário, um biscoito ou outro da mão papuda e oleosa do merceeiro tinham-no ajudado na tarefa. Assim é que ele havia de ser homem, um dia. Mas o patrão mostrava maior pressa.

Pai,  mãe  e  mestre-escola  nunca  lhe tinham batido.  Atreveu-se  uma  vez  a declará-lo.  Foi  pior.  Chegou  o  Verão.  As  festas  de  São  João  e  São  Pedro aumentaram-lhe  a  tristeza.  Reviu  nesses  dias  mais  intensamente  a  alegria  da aldeia, os bailes à noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar  à  missa,  e  ele  a  pensar  que,  quando  fosse  crescido,  havia  de  ter  uma namorada  por  quem  queimasse  uma alcachofra,  a  quem  cantasse  umas quadras falando de estrelas e de flores.

A bulha nas ruas, nessas noites, não o deixara dormir. Cada bomba era uma pancada  no  coração.  Um  sol-e-dó  que  passou  tocando  arrancou-lhe  lágrimas de imensa saudade.

Pelos Santos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior.

Depois veio o Inverno, começaram os dias de chuva.

O  mau  tempo  irritava  o  patrão,  porque  lhe  afugentava  fregueses.  Na  loja, com  recantos  muito  negros,  acendiam-se  muito  cedo  os  candeeiros,  e  o Manuelzito  tinha  pena da  sombra  em  que  se  acolhia  com  maior  amor. Pasmava os olhos, fugia com o pensamento para muito longe.

—Acorda, ralaço! —gritava-lhe o patrão.

Estava a chegar o Natal.

Que lindo era o Natal lá na aldeia!

Andavam  na  rua  a  abrir  um  cano;  quase  ninguém  ali passava;  os  passeios eram cheios de lama. O patrão andava furioso.

Então o pequeno teve uma ideia.

* * *

Lembrou-se  de  fazer  muito  misteriosamente  um  presépio.  O  segredo  em que havia de trabalhar mais o animava na tarefa.

Todos os dias, muito a medo, enquanto o  patrão almoçava ou saía da loja algum instante, vinha à porta, se não havia freguês a servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de barro nas escavações do cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase às apalpadelas, ia fazendo as figurinhas.

Assim  modelou  o  menino  Jesus,  que  deitou  num  berço  de  caixa  de fósforos, Nossa Senhora de mãos postas, São José de grandes barbas, os três Reis Magos  a cavalo, e  os pastores, um a tocar gaita de  foles, outro  com um cordeirinho  às  costas,  e  uma  mulher  com  uma  bilha.  Não  se  pareceriam  lá muito; mas ele deu provas de que sabia puxar pela imaginação.

Sempre lhe faltava alguma coisa. Havia problemas difíceis de resolver.

Um  dia,  engraxando  as  botas  do  patrão,  lembrou-se  de  engraxar  um  dos reis, e pôs-lhe depois umas bolinhas brancas, de papel a fingir os olhos.

Aos  anjos  fez  asas  com  as  penas  de  uma  galinha  que  depenou  para  um jantar  de  festa  que  não  comeu.  Moeu  vidro  para  fingir  as  águas  do  rio,  e  no papel de embrulho recortou um moinho que só havia de armar à última hora.

Levou nisso parte de Novembro e Dezembro todo, até ao Natal.

Escondia os materiais debaixo da enxerga e, de vez em quando, revia-se na obra.

O que mais o encantava era o menino Jesus, com a cabeça do tamanho de um grão de milho, com buraquinhosa fingirem olhos, ouvidos, nariz e boca. Tinha  mãos  com  cinco  dedos  riscados  a  canivete  e  dois  pezinhos  que  ele achava um encanto.

Com tiras de papel azul havia de fazer o céu e, como o não tinha dourado onde  recortasse  a  estrela,  fez  em  papel  branco  uma meia  Lua;  vinha  quase  a dar na mesma.

Aquele mês passou correndo.

Era a véspera do Natal. As dez e meia, o patrão mandou-o deitar e saiu.

Que alegria estar só!

Não lhe deixavam luz; mas que importava? Às escuras armaria o presépio. E logo começou. Enrolou o moinho, pôs-lhe as velas; esticou o papel azul que fingia  o  céu  e  pregou  nele  com  um  alfinete  a  meia  Lua;  espalhou  o  vidro moído, num S em volta  das  palhas; dispôs as figurinhas, suspendeu os anjos. Depois fez uma carreira de fósforos de cera, que todos se tinham de acender ao mesmo tempo, num deslumbramento, quando desse meia noite.

Deram onze e três quartos.

Ajoelhou.

Batia-lhe  o  coração,  que  lhe  parecia  que  deviam  de  ser  milagrosas  as figurinhas, que delas lhe viria algum bem, consolação da sua vida triste.

Que  seria  quando  ele  iluminasse  o  desvão  da  escada  e  os  santinhos  se pusessem  todos  a  luzir  quase  tanto  como  os  verdadeiros?  Rezava-lhes... Rezava-lhes...  Àquela  hora,  lá  na  aldeia,  tocavam  os  sinos  alegres  e  iam ranchos contentes a caminho da igreja. Lá dentro reluzia o trono, e o sacristão muito atarefado ia, vinha...

Meia noite!

Acendeu os fósforos e ficou embasbacado!

Nunca  assim  vira  coisa  tão  perfeita.  Os  anjos  voavam  deveras,  os  cavalos dos  reis  galopavam, o rio corria, as velas  giravam no  moinho  e os  pontinhos do Menino Jesus sorriam-lhe no rosto a São José e a Nossa Senhora!

Pôs-se a cantar, como lá na aldeia:

Andava nessas campinas,

Esta noite, um querubim.

Tão enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abrir a porta, entrar na loja, chegar ao desvão.

Acordou-o do êxtase um pontapé.

—Isso... Agora larga-me fogo à escada!... Varre-me já esse lixo!

E ele, a chorar, levantou-se, foi buscar a vassoura.

O bruto continuava aos pontapés.

—Vá?... Vá!

Mas  quando  se  deitou,  encontrou  na  enxerga  uma  figurinha.  Apalpou-a, conheceu-a  logo:  era  a  do  Menino  Jesus.  Beijou-a  muito.  Pior  vida  levara do que ele...

Sentiu de  repente  um dó  muito grande do  patrão, que  não  vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar tão meigo nos seus olhinhos picados.


Fonte:
Contos de Natal portugueses : colectânea de histórias, textos, lendas e poemas. (Em linha). Acedido em 23.12.2023. Disponível em https://www.berci.pt/contos-de-natal-portugueses.pdf

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