04.01.1899-04.01.2024
125 anos
Romancista e dramaturga, autora de uma ampla obra literária e jornalística. Mulher progressista, de pensamento muito avançado na geração a que pertenceu, a sua escrita abordava temáticas polémicas e tabus da condição feminina (1). Nas décadas de 1930 a 1960, produziu livros, crónicas, peças de teatro e literatura infantil; proferiu palestras, conferências; participou em programas radiofónicos, trabalhou para vários jornais em Portugal, África e Brasil. Maria Archer sofreu pressões políticas, teve obras censuradas, perdeu as condições de subsistência, foi silenciada e, por fim, condicionada ao exílio, que a manteve afastada do seu país durante mais de duas décadas. Foi uma precursora da participação da mulher na oposição ao salazarismo.
Como antifascista interveio na Oposição à Ditadura, quer no MUD (1945), quer nas campanhas eleitorais de 1949 e 1958. Perseguida pela PIDE, exilou-se no Brasil e continuou a sua actividade literária e a acção política contra o regime. Dali só conseguiu regressar a Portugal em 1979 e, sem meios mínimos de subsistência, veio a ser internada num lar de pobres sem família, em Lisboa. Considerada uma escritora esquecida durante muitas décadas, vem sendo alvo de homenagens, recentemente, e as suas obras, parcialmente reeditadas, despertam o interesse de vários pesquisadores. Em 1948 Maria Archer escreveu: «A minha obra tem sido norteada pelo princípio vital de rebater o preconceito arcaico da inferioridade das mulheres. A chamada oposição pode contar com as mais nobres energias da minha pena de escritora, da minha voz de conferencista, e mesmo com o meu voto de cidadã» (2) A sua invulgar liberdade de espírito, associada a uma personalidade de forte carácter, que caminha determinada e independente, sem ceder a constrangimentos impostos pelo regime e pela sociedade, acabaram por condicioná-la, já doente, nos últimos anos de vida.
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1. Maria Emília Archer Eyrolles Baltazar Moreira, conhecida como Maria Archer nasceu em Almodôvar, em 1899 e faleceu num asilo, em Lisboa, a 23 de Janeiro de 1982. Era filha de João Baltazar Moreira Júnior, funcionário do Banco Nacional Ultramarino, e de sua mulher, Cipriana Archer Eyrolles (1878-1949), ambos naturais do distrito de Beja. Mudou-se para Moçambique com os pais e seus cinco irmãos, em 1910. Só terminou a escola primária aos 16 anos (por iniciativa própria), tendo para isso que insistir com seus pais, por acharem desnecessária a sua instrução, pelo que podemos considerá-la uma autodidata. A família voltou para Portugal em 1914, mas dois anos depois estava novamente em África, desta vez na Guiné-Bissau. Em 1921, regressada a Portugal, Maria Archer casa-se em Faro com o bancário Alberto Teixeira Passos, celebrando a união numa cerimónia religiosa. Após o matrimónio, o jovem casal fixa residência na Ilha do Ibo, província de Cabo Delgado, Moçambique. Cinco anos mais tarde, após a queda da I República e a crise subsequente, o marido perde o emprego e o casal muda-se para Faro e posteriormente para Vila Real, terra natal de Alberto Teixeira Passos. Em 1931, o casal divorcia-se e Maria Archer foi morar em Lisboa, de onde, por falta de meios de subsistência, se viu forçada a partir para Luanda, ficando a viver com os pais. Iniciou então a sua carreira literária com a obra Três mulheres, em coautoria com Quartim Graça (Luanda, 1935).
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2. Anos mais tarde voltou a Lisboa, e aí começou então um período de intensa atividade literária. Nessa fase, priorizou temáticas sobre África, merecendo destaque o livro
Viagem à roda de África (1938), com o qual recebeu o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, seguido de outras obras na Coleção Cadernos Coloniais (1936 e 1938). A partir de 1938, com a obra
Ida e volta duma caixa de cigarros, Maria Archer iniciou uma nova etapa de inovações temáticas, com destaque para as questões da condição feminina. Aborda assuntos polémicos e tabus, tais como: violência doméstica, sexualidade feminina, virgindade, honra, aborto, separação, trabalho e prostituição, entre outros. Os seus livros tiveram então várias edições com boa recepção e aceitação do público. Eram inovadores e provocadores, retratavam a condição e o quotidiano femininos, criticavam práticas vigentes, perversidade das relações conjugais e falsas moralidades. Sua narrativa contemplava personagens femininas combativas, independentes e sedutoras, posicionadas entre o consentido e o proibido. Em 1938,
Ida e volta duma caixa de cigarros foi qualificado pelos periódicos (de cariz fascista)
Voz e
Novidades como “pornográfico”. O Serviço de Censura apreendeu e proibiu a obra sob a alegação de que, com seu “
caracter acentuadamente erótico, a autora compraz-se na volúpia do pormenor sensual, que parece ser o único objectivo”. Apesar dos recursos interpostos (1939 e 1944), a censura manteve a decisão afirmando “
que se julga de conveniência pública fundada principalmente na intenção de preservar leitores de formação incorrupta ou imperfeita de leituras que seriam perniciosas”.
No caso do romance autobiográfico
Aristocratas (1945), a autora entrou em confronto com a família, que se viu representada no texto e, em 1946, a irmã da escritora encaminhou, para a Direção dos Serviços de Censura, o pedido de apreensão da obra. Com o recrudescimento político e moral do regime da Ditadura, a obra de Archer é considerada “inadequada” e ela passa a ser seguida de perto pela PIDE. Em 1947, a autora cai novamente nas garras da censura com o livro
Casa sem pão, que foi apreendido. Os despachos da Direção dos Serviços de Censura, assinados pelo capitão Rodrigues de Carvalho, indicavam que a obra tinha um
“grave inconveniente moral”. Maria Archer reafirmava que seus escritos eram norteados pelo questionar da condição de discriminação e submissão das mulheres, mas a sua abordagem, temáticas e a descrição narrativa enfrentavam, na verdade, as concepções vigentes dos papéis atribuídos aos géneros, marcados pelos padrões ultra conservadores e moralistas do Estado Novo. Por isso, os seus livros foram identificados como ousados e acintosos, sendo a escritora considerada pelos mecanismos censórios como “incómoda”
(3).
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3. Em finais da década de 1930, Maria Archer toma posição contra o regime e está presente em iniciativas políticas da Oposição, nomeadamente ligadas à Seara Nova, em que se destaca por ser uma das raras mulheres em acções públicas.
A partir de 1945, assinala-se a sua presença em círculos literários, culturais e políticos, com críticas ao Estado Novo, e filia-se no Movimento de Unidade Democrática (MUD), organização de oposição ao regime fascista de Salazar. Em 1949, apoiou o candidato de oposição à presidência, Norton de Matos. Em Março de 1953, credenciada pelo jornal República, Maria Archer assistiu ao julgamento do opositor ao regime Henrique Galvão (respeitante a uma conspiração que Galvão organizara para derrubar o governo), fez anotações dos depoimentos, entrevistou o réu, advogados e o próprio o juiz, evocando a sua intenção de escrever um livro sobre a questão. Devido a essa participação, passou a ser vigiada e foi interrogada pela PIDE, a sua casa foi invadida por agentes da polícia e as suas anotações sobre o julgamento foram apreendidas. Não tardou a denunciar o ocorrido no artigo “Um caso inédito de perseguição do pensamento”, publicado na República, em Outubro de 1953. As pressões iriam ampliar-se, com ela a reclamar das hostilidades de uma sociedade conservadora, do endurecimento do regime, da perseguição da PIDE e da censura (pela interdição dos seus livros). Por fim, receando uma possível prisão e sem condições de prosseguir as suas atividades, decide exilar-se.
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4. Sem condições de viver, em Portugal, da sua produção intelectual, refugia-se no Brasil, onde chega em Julho de 1955. Um ano depois, em entrevista ao Diário de Notícias, de 1956, Maria Archer denunciou as perseguições a que foi submetida em Portugal, considerando-se “amordaçada pela censura”. Depois, à semelhança dos outros portugueses exilados em São Paulo, leva a cabo oposição ao regime salazarista, tendo a escrita como arma de luta (4), mas além disso participa ativamente em ações políticas, em várias frentes. Manteve produção de livros, crónicas, artigos, ensaios, palestras, conferências e participações radiofónicas. Os seus escritos e actuações centravam-se sobretudo na denúncia/oposição ao regime salazarista e nas questões femininas. Colaborou nos jornais: O Estado de S. Paulo (no Suplemento Literatura e Arte, mas também de forma mais expressiva e constante destaca-se a sua participação no Suplemento Feminino), na Semana Portuguesa. No jornal Portugal Democrático (regularmente de 1956 a 63), aborda temáticas políticas, com destaque para as denúncias sobre a censura e a falta de liberdade de expressão; apontando o desconhecimento e o ocultar da censura vigente nos países ibéricos, particularmente, em Portugal – deixando o seu testemunho pessoal (dois dos seus livros de ficção apreendidos pela polícia política) – bem como as consequências da censura ao processo criativo e seus malefícios para a literatura portuguesa (5). E colaborava na Revista Municipal de Lisboa (1939-1973). Alternou entre a literatura de temática africana e as obras de oposição à ditadura portuguesa. Também se encontra colaboração da sua autoria na revista Portugal Colonial (1931-1937) e na revista luso-brasileira Atlântico.
Nos seus escritos do exílio, Maria Archer assumia um discurso de acusação, buscando conscientizar os leitores sobre a real situação e as atrocidades cometidas pelo governo salazarista. Nos artigos “Cai sobre nós esta vergonha, mulheres" (de 1958 e 1959), ela comentava a falta de apoio feminino nas lutas de oposição ao regime, apesar de apontar a existência de exceções, e clamava por maior adesão de esposas, filhas e mães na resistência ao salazarismo. As questões que envolviam as mulheres portuguesas estiveram sempre presentes nas lutas de Maria Archer: por exemplo, na conferência “Presença da mulher na paisagem social portuguesa”(1960). Em 1963, Maria Archer fundou a filial da União das Mulheres Portuguesas (UMP), da qual foi eleita presidente, sendo a iniciativa noticiada no Portugal Democrático. Também no “Ato Público de Solidariedade às Presas Políticas Portuguesas” (1964), onde expôs a situação das mulheres encarceradas na fortaleza de Caxias.
Esteve sob a investigação do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social, de São Paulo), sendo elaborados relatórios da sua intensa militância política (6).
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5. Depois do 25 de Abril ainda permaneceu no Brasil. A doença e o avanço da idade condicionaram-lhe muito o regresso. No seu exílio, Maria Archer buscou viver do seu ofício e, na década de 1970, os seus ganhos eram já insuficientes para custear os tratamentos de saúde. Em 1973, queixara-se à família das dificuldades que enfrentava e pedira que solicitassem uma autorização para o seu retorno a Portugal, mas só conseguiu voltar em Abril de 1979, já com 80 anos e saúde muito abalada.
Voltou para Portugal a 26 de abril de 1979, tendo sido internada num asilo, um lar de idosos sem família nem meios de sustento, denominado Mansão de Santa Maria de Marvila, em Lisboa, onde passou os seus últimos três anos de vida. Faleceu aos 83 anos de idade, a 23 de Janeiro de 1982, sem deixar descendência. Encontra-se sepultada no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
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6. Obra publicada
Frequentou apenas a escola primária e foi como autodidata que adquiriu ampla cultura, tornando-se escritora profissional, tendo actividade como jornalista e publicando uma imensidão de obras, que transitam por diferentes campos do conhecimento, como história, geografia, etnografia, sociologia e antropologia. A sua escrita (num estilo agradável e envolvente), procurava instruir, debater, informar, defender ideias e instigar o debate.
- Três mulheres (com Pinto Quartim Graça) - Luanda, 1935
- África selvagem - Lisboa, Guimarães & lda, 1935
- Sertanejos - Lisboa, Editorial Cosmos, 1936
- Singularidades de um país distante - Lisboa, Editorial Cosmos, 1936
- Ninho de bárbaros - Lisboa,Editorial Cosmos, 1936
- Angola filme - Lisboa, Editorial Cosmos,1937
- Ida e volta duma caixa de cigarros - Lisboa, Editorial O Século, 1938
- Viagem à roda de África : romance de aventuras infantis, Lisboa, Editorial O Século, 1938
- Colónias piscatórias em Angola - Lisboa, Cosmos, 1938
- Caleidoscópio africano - Lisboa, Edições Cosmos, 1938
- Há dois ladrões sem cadastro - Lisboa, Editora Argo, 1940
- Roteiro do mundo português - Lisboa, Edições Cosmos, Lisboa, 1940
- Fauno sovina - Lisboa, Livraria Portugália, 1941
- Memórias da linha de Cascais - com Branca de Gonta Colaço, Lisboa, parceria António Maria Pereira, 1943
- Os Parques infantis, Lisboa - Associação Nacional dos Parques Infantis, 1943
- Ela é apenas mulher - com António Maria Pereira, Lisboa, 1944
- Aristocratas - Lisboa, Editorial Aviz, 1945
- Eu e elas, apontamentos de romancista - Lisboa, Editorial Aviz, 1945
- A Morte veio de madrugada - Coimbra, Coimbra Editora Lda, 1946
- Casa sem pão - Lisboa, Empresa Contemporânea de Edições, 1947
- Há-de haver uma lei - Lisboa, Edição da Autora, 1949
- O Mal não está em nós - Porto, Livraria Simões Lopes, 1950
- Filosofia duma mulher moderna - Porto, Livraria Simões Lopes, 1950
- Bato às portas da vida - Lisboa, Edições SIT, 1951
- Nada lhe será perdoado - Lisboa, Edições SIT, 1953
- A primeira vítima do Diabo - Lisboa, Edições SIT, 1954
- Terras onde se fala português - Rio de Janeiro, Ed. Casa do Estudante do Brasil, 1957
- Os Últimos dias do fascismo português - S. Paulo, Editora Liberdade e Cultura, 1959
- África sem luz - São Paulo, Clube do Livro, 1962
- Brasil, fronteira da África - São Paulo, Felman-Rêgo, 1963
- Herança lusíada - Lisboa, Edições Sousa e Costa, s.d.
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Teatro
- Alfacinha - comédia em 1 ato, 1949
- Isto que chamam Amor - drama em um ato
- Numa casa abandonada - drama em um ato
- O Poder do dinheiro - comédia em 3 atos
- O leilão - drama em 3 atos
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Notas:
(1)Tais como: violência doméstica, sexualidade feminina, virgindade, honra, aborto, separação, trabalho da mulher e prostituição.
(2) O Sol, Setembro 1948.
(3)«Tudo o que Maria Archer dizia era proibido. Tudo o que ela escrevia, portanto, era assustador. A desvirginização, o aborto, o prazer sexual das mulheres, a violência masculina. O trabalho escravo que as mulheres então executavam nas suas próprias casas. A violação diária na cama do casal. A passividade ou revolta contra tudo isto. A prostituição a que tantas raparigas eram obrigadas ou apenas empurradas, por uma sociedade hipócrita, que em seguida a condenava» [Maria Teresa Horta, Prefácio. In: ARCHER, Maria. Ela é apenas mulher]
(4) A colónia de exilados em São Paulo nas décadas de 1950/60 integrava comunistas, socialistas, anarquistas, liberais republicanos e até dissidentes do próprio regime que convergiam numa plataforma unificadora de contestação ao regime salazarista e se uniam em ações de oposição, actuando pela via da Imprensa. Foi o caso do grupo que fundou o jornal Portugal Democrático editado entre 1956 e 1977. Este periódico era o jornal da Oposição editado no exterior, de maior circulação, tinha a colaboração de intelectuais, escritores, e jornalistas, e contou sempre com Maria Archer, em várias matérias.
(5) No artigo “A censura à imprensa e ao livro”, em Outubro de 1956, Maria Archer lembrava: “Meus livros foram apreendidos sem a mínima justificação do acto e sem sequer me ser dada resposta aos pedidos que fiz para que essa explicação me fosse fornecida. [...] a simples existência da censura destrói uma geração literária. [...] A nossa situação é tão dura e dolorosa que o livro chega a ser apreendido em casa, ainda em original inacabado, em cima da secretaria, como me aconteceu”
(6) Participou em várias ações e em acontecimentos políticos, nomeadamente: Comité dos Intelectuais e Artistas Portugueses Pró-Liberdade de Expressão (1958), Conferência Sul-Americana Pró-Anistia para os Presos e Exilados Políticos da Espanha e Portugal (1960), II Conferência Sul-Americana Pró-Anistia para os Presos e Exilados Políticos da Espanha e Portugal (Montevidéu/1961), Encontro Estadual de Solidariedade a Cuba (integrando a mesa, 1963), Debate “42 anos de fascismo em Portugal” (PUC-SP, finais de 1968). No Ato Público em Solidariedade dos Povos de Portugal e Espanha (1962, fez parte da mesa)
Fontes:
- MATOS, Maria Izilda Santos de (2021), «A escrita como experiência de luta e resistência: Maria Archer». [“Trajetória de vida e produção de Archer em Portugal, em particular as ações de censura às suas obras; atuação e obras produzidas nos anos de exílio em São Paulo (1955-1979). Tem como fontes e referências: a documentação da PIDE, o acervo da Torre do Tombo e da Fundação Mário Soares, do Deops/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), textos literários, cartas, fotografias, entrevistas, crónicas, imprensa, escritos de Maria Archer no exílio”] ArtCultura, v. 23, n.º 42, jan-jun. 2021, p.154-174. Disponível em https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/61857.