Com certeza já terá ouvido falar do termo
“booktok” ou
“bookstagram”, fenómenos digitais que invadiram Portugal no início de 2020. Tratam-se de subcomunidades presentes nas redes sociais Tiktok e Instagram, direcionadas para os livros e para a leitura. Nestas plataformas, os utilizadores debatem, partilham as suas opiniões sobre livros e fazem as suas recomendações literárias.
A verdade é que os números não enganam e a hashtag #booktok conta com mais de 186 mil milhões de visualizações em todo o mundo chegando, todos os dias, a milhares de novos utilizadores. Segundo
um estudo desenvolvido pelo WordsRated, 48% dos utilizadores do Tiktok norte-americanos passaram a ler mais livros após o contacto com o Booktok. O mesmo estudo indica ainda que o Tiktok contribuiu para a venda de cerca de 20 milhões de livros em 2021, o que representa 2,4% face ao total de livros vendidos nesse ano. Um caso de sucesso que adveio deste fenómeno foi o livro
Isto Acaba Aqui da autora Colleen Hoover: originalmente publicado em 2016, o livro era praticamente desconhecido até o Tiktok o transformar no livro de ficção Young Adult mais vendido de 2021. Em tradução direta, o termo Young Adult quer dizer jovem adulto e refere-se a um género literário emergente, destinado ao público compreendido entre os 15 e 29 anos. A plataforma viralizou as obras de Colleen Hoover de tal forma, que a autora passou a dominar completamente o mercado do género romance, sendo a responsável por mais de 48% das vendas deste género literário em 2023 aumentando, nos últimos 12 meses, as vendas dos seus livros em 316%.
O fenómeno no território nacional: #booktokportugal é uma realidade
AS REDES SOCIAIS VIERAM TORNAR A LEITURA MAIS ACESSÍVEL E MAIS AFASTADA DAQUELA IDEIA ACADÉMICA DE QUE O LIVRO TEM DE SER UMA FONTE DE EDUCAÇÃO EM DETRIMENTO DE UMA FONTE DE ENTRETENIMENTO"
Desengane-se se pensa que este fenómeno não invadiu já o território português: a hashtag #booktokportugal conta com cerca de 128 milhões de visualizações e os livros que por lá viralizam têm inundado as livrarias portuguesas.
“
Os jovens estão na internet, é aí que recebem grande parte da informação que consomem. Quando os livros chegaram às redes sociais e chegaram a uma geração pouco ou nada cativada para a leitura, o resultado, mesmo que tivesse sido mais modesto em Portugal, já teria feito diferenças enormes face ao nosso panorama”, afirma a escritora, e fundadora do
Book Gang, um clube do livro digital,
Helena Magalhães.
A verdade é que, apesar de os efeitos serem de menor expressão quando comparados com outros países, alguns dados estatísticos evidenciam um aumento da percentagem de jovens leitores em Portugal: segundo um estudo realizado pela GFK, os jovens entre 15 e 35 foram os que mais compraram livros no último ano. Os resultados da Feira do Livro de Lisboa de 2023 também revelam dados animadores: dos quase 900 mil visitantes, estima-se que 59% dos visitantes tinham menos de 34 anos, e 33% idades compreendidas entre 18 e 24 anos.
Mas
o que leem os jovens, afinal? A resposta parece ser consensual: “
Os jovens procuram livros que reflitam o mundo onde eles vivem”, explica Helena Magalhães. Mariana Nunes, booktoker e bookstagramer conhecida comumente por
chroniclesofmariana, corrobora a ideia: “
Os jovens procuram leituras que os façam sentir, sentir emoções e sentir que são ouvidos, procuram sobretudo respostas para as suas perguntas e sobre temas que ainda são muito tabu: sexualidade, saúde mental, racismo.”
Temáticas como a emancipação feminina, relacionamentos abusivos e identidade de género estão muito presentes nos livros-tendência entre os jovens leitores. “São faixas etárias que estão muito sintonizadas, ou tentam estar sintonizadas com aquilo que os rodeia. O livro passou a ser um meio de aceder, possivelmente, a respostas de muitas perguntas e, curiosamente, muitas vezes através da ficção”, diz-nos Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).
Em plataformas nas quais o formato predileto dos seus utilizadores são os vídeos de poucos segundos, os booktokers e bookstagrammers optam por desenvolver conteúdo mais fora da caixa, visualmente apelativo:
“
As redes sociais vieram tornar a leitura mais acessível e mais afastada daquela ideia académica de que o livro tem de ser uma fonte de educação em detrimento de uma fonte de entretenimento. Um livro pode ser essas duas coisas, ou até não ser nenhuma. O Tiktok e o Instagram vieram aproximar o leitor dessa possibilidade”, partilha com o SAPO Mag Elga Fontes, tradutora, e criadora de conteúdos do projeto
quemmelera. “
É mais relevante que os jovens entre os 15 e os 25 anos leiam livros populares, comerciais, romances, fantasias, livros que reflitam o seu mundo, as suas batalhas, as suas dúvidas, os seus medos, os seus gostos e que se sintam representados, que encontrem na leitura um escapismo e um entendimento deles mesmos”, defende a escritora Helena Magalhães.
Das redes sociais às prateleiras das livrarias: as tendências já mexem no mercado editorial
São precisamente os jovens que, em Portugal, estão a impulsionar o mercado editorial, transportando o fenómeno digital para as livrarias espalhadas pelo país, que já contam com secções dedicadas aos livros que viralizam nas plataformas digitais. “Tivemos um mercado estagnado durante anos, as editoras estavam exclusivamente centradas no leitor de 50 anos – que era quem mais consumia livros em Portugal – e, desta forma, publicar livros para esse público era o menos arriscado. As mudanças que surgiram nos últimos três anos através das redes sociais transformaram o mercado e as editoras começaram a adaptar as suas linhas editoriais para responder à procura acentuada por literatura Young Adult”, explica Helena Magalhães.
Pedro Sobral, presidente da APEL, reconhece a transformação do mercado editorial português e evidencia o trabalho que as editoras têm desenvolvido em conjunto com os influencers que se dedicam à criação de conteúdos literários: “No momento em que se percebeu que havia um grande impacto dos livros que estavam a ser descobertos nestas redes sociais, o mercado editorial adaptou-se muito rapidamente. O mercado percebe que há aqui, acima de tudo, uma fonte de promoção de certo tipo de livros e atua rapidamente. Ou editamos em português ou também trabalhando com as próprias redes sociais e com os booktokers e bookstagrammers, para obviamente depois alavancar ainda mais essa promoção e essa visibilidade dos seus livros.”
Um grande exemplo da influência que os criadores de conteúdo têm exercido sobre o mercado editorial remete a 2020, e é uma história que foi partilhada com o SAPO Mag pela booktoker e bookstagrammer Mariana Nunes (@chroniclesofmariana), que conta com 22.9 mil seguidores no Tiktok e 59,8 mil seguidores no Instagram: “O livro Caraval de Stephanie Garber foi publicado em português em 2018 pela Editorial Presença. Eu li o livro em 2020, em plena pandemia, e adorei! Quando percebi que a editora não tinha traduzido os restantes dois livros da saga fiquei muito transtornada e chateei imenso a editora para que publicassem os restantes. Lancei uma petição, que em cerca de três dias já contava com 1000 assinaturas, e incluí Caraval no meu clube do livro virtual, para que todos os meus seguidores o lessem. A obra teve um boom tão grande que a editora acabou por traduzir os dois livros que faltavam. Foi muito engraçado e gratificante ver tanta gente junta a lutar por um objetivo comum que acabou por se concretizar.”
Este é um dos inúmeros exemplos que demonstram a influência que as redes sociais e os criadores de conteúdo têm exercido sobre o mercado editorial. Com a capacidade de comunicar com as massas de forma rápida e eficiente, as editoras têm trabalhado em conjunto com vários criadores de conteúdo, não só a nível de comunicação e promoção, mas também no que diz respeito à curadoria editorial. “Hoje somos [criadores de conteúdo] muito mais ouvidos. Antes, um livro saía lá fora e demorava imenso tempo até ser publicado em Portugal. Hoje em dia, o mercado está muito mais atento e atua mais rápido”, reconhece Mariana Nunes.
Vejamos como este fenómeno se traduz no top de vendas de livros em Portugal: no ano passado, em 2022, o top da Fnac foi completamente dominado por títulos que viralizaram nas redes sociais. À semelhança do panorama mundial, em Portugal, a escritora Colleen Hoover dominou o top de vendas com três dos seus títulos mais conhecidos: Isto Acaba Aqui, Isto Começa Aqui e Amor Cruel, que ocupam a primeira, a quarta e a sexta posição respetivamente. As obras Amor e Gelado de Jenna Evans Welch e A Hipótese do Amor de Ali Hazelwood, também com o selo do #booktok, marcam a sua presença no top ocupando o quinto e décimo lugar respetivamente. Este ano a tendência mantem-se, os livros que têm viralizado nas plataformas digitais têm dominado o top de vendas: A Criada e O Segredo da Criada de Freida McFadden abrem o top, e as obras Isto Acaba Aqui e Isto Começa Aqui continuam, mesmo um ano depois, como dois dos títulos mais vendidos.
Apesar da tendência, ainda há um longo caminho a percorrer
“É muito animador perceber que hoje em dia já temos muitos portugueses, nomeadamente mais novos, a comprar livros para os ler, porque antes do confinamento, a esmagadora maioria dos livros que eram comprados em Portugal eram para oferta, isto é, o livro trabalhava no gift market, não era propriamente neste mercado de entretenimento, conhecimento, cultura, etc”, constata Pedro Sobral.
Apesar dos resultados animadores nestes dois últimos anos no mercado editorial e livreiro, é importante não esquecer que, em 2022, segundo um estudo realizado pelo INE, 58,1% da população portuguesa não leu um único livro. “Nós somos o segundo ou terceiro país da Europa com piores índices de leitura da União Europeia. E, obviamente, ainda partimos de uma base baixa muito grande, ainda há muito a fazer”, relembra Pedro Sobral. “E é por isso que tenho alertado muito para a necessidade de medidas estruturais que permitam fixar este aumento de jovens leitores. Estas medidas estruturais passam por muita coisa, há muitas variáveis e muitas peças móveis. Passa por analisar como as obras literárias são dadas em salas de aula, pelo próprio Plano Nacional de Leitura, por uma lei de preço fixo mais adequada àquilo que são as novas exigências do mercado e a forma como o mercado evoluiu; pela execução do cheque-livro, que pode trazer a muitos miúdos de 18 anos a possibilidade de comprar livros e de experienciar a compra de livros em livraria. Passa também pelo reforço dos orçamentos das bibliotecas, pela capacidade de os poderes públicos e a própria sociedade civil entenderem que o livro não é um bem de luxo, mas é um bem tão essencial como, por exemplo, o cabaz de compra que agora teve IVA zero. Estes problemas estruturais têm de ser concertados entre as instituições públicas, gente da sociedade civil e com os próprios leitores. Em Portugal, ainda funcionamos muito na lógica de que temos de ser um país desenvolvido, um país economicamente evoluído para ter índices de leitura elevados e não, é exatamente o contrário”, declara Pedro Sobral ao SAPO Mag.
Mas será esta tendência uma moda? Quais as perspetivas do futuro da leitura em Portugal? Helena Magalhães prevê um futuro positivo: “Eu acredito que é algo que veio para ficar porque esta geração que é agora cativada será composta por futuros adultos apaixonados pela leitura. E os livros, e a arte no geral, estão sempre em constante mutação e adaptação. O que prevejo é que provavelmente este boom dos romances Young Adult e romances pop irá começar a abrandar porque chegará a uma saturação e outros fenómenos irão chegar. Todos estes jovens que se interessam pela leitura através dos mesmos livros, graças ao TikTok e ao Instagram, mais cedo ou mais tarde vão acabar por começar a descobrir outros e a explorar o mundo da literatura. E é assim que se criam leitores.”
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