Many happy returns of the day
William Powell Frith (1819-1909), 1856
North Yorkshire, Harrogate Museums and Art Gallery
"O início do inverno é tempo de exaltação e de festa em ação de graças pela luz revigoradora que sucede às trevas, quando, após o solstício, os dias se tornam cada vez maiores. As festas associadas ao Natal têm início no dia de Santo André e incluem os dias de São Nicolau e de Santa Luzia, respetivamente, a 6 e a 13 de dezembro.
Santo André, o Protocletos, isto é, o “primeiro que foi chamado”, sendo, por isso, o escolhido para marcar o início do calendário religioso, a 30 de novembro nas igrejas ocidentais. Nalgumas regiões da Alemanha, era costume as crianças, na véspera, pendurarem as meias que, na manhã do dia seguinte, apareciam cheias de nozes e maçãs (Bowler, 2000, p. 6).
Devido ao atraso acumulado pelo calendário juliano, durante a Idade Média, o dia da festa de Santa Luzia, cuja data corresponde a 26 de dezembro no calendário gregoriano, coincidia com o solstício de inverno, imediatamente antes de São Tomé que, na altura, se celebrava a 21 de dezembro.
Cartão de Natal: Santa Luzia
Adèle Söderberg (1880-1915), 1916
A proximidade etimológica entre o nome de Luzia (ou Lúcia) e o termo latino “lux”, ou luz, reforçam a ligação da festa à celebração do solstício, em particular nos países nórdicos. A partir do século XVI, na Suécia, constitui uma das festas principais (Senn, 2012, p. 112) e marca o início da época natalícia. Em casa, mas também nas igrejas, escolas, hospitais e outros espaços de trabalho, fazem-se procissões, com raparigas e rapazes de longas túnicas brancas que entoam cânticos tradicionais – incluindo a cantiga popular napolitana Santa Lucía – alusivos à progressão da luz sobre as trevas, e oferecem bolos de açafrão e bolachas de gengibre aos trabalhadores, como professores, médicos ou juízes, desejando-lhes sorte e que sejam justos nos seus trabalhos. À frente das suas donzelas, de velas na mão, a rapariga que representa Lúcia, abre o cortejo com uma coroa de sete velas acesas. A distribuição de presentes reflete a hagiografia de Santa Luzia que distribuiu toda a fortuna da família pelos pobres.
Na Igreja Ortodoxa Russa, a celebração litúrgica do Taumaturgo São Nicolau de Bari, bispo de Mira, na Lícia, atual Turquia, no século IV, coincide com o último domingo do ano no calendário juliano (Federer, 2002). A sobreposição de lendas à hagiografia do santo conta que tinha por hábito ajudar os mais pobres, dispondo um saco com moedas de ouro na chaminé de suas casas, dando origem à tradição do velhinho que, na véspera do Natal, traz presentes aos meninos bem-comportados.
Nos finais da Idade Média, a festa de São Nicolau era um pretexto para distribuir alimentos às crianças que padeciam de fome durante o jejum do Advento. Inicialmente figurado como bispo, a publicidade fixou a iconografia de São Nicolau como um velho gordo e bonacheirão, com longas barbas brancas, vestido de vermelho, com o casaco e o barrete debruados a pele branca, de botas e cinturão pretos, a que se associam outros atributos natalícios, como o azevinho.
Old Father Christmas
In: King, J. (1687). The examination and tryal of old Father Christmas … Written according to legal proceeding, by Josiah King. London: Printed for Charles Brome, at the Gun at the West End of S. Pauls.
O Father Christmas era a personificação do Natal, registada no folclore britânico desde o século XVI. A referência mais antiga que se conhece está registada num cântico em forma de diálogo, atribuído a Richard Smart e datado de entre 1435 e 1477:
Nowell, Nowell, Nowell, Nowell,
’Who is there that singeth so?’
’I am here, Sir Christëmas.’
’Welcome, my lord Christëmas,
Welcome to us all, both more and less
Come near, Nowell!’
(cit. in Simpson, & Roud, 2001, p. 119)
A figura do Father Christmas foi recuperada na época vitoriana, retratado já como um velho de barbas. Ao mesmo tempo que a festa ganhava um cunho familiar, passa a focar-se na ligação ao mundo infantil, com uma função simultaneamente disciplinadora e moralizadora, de oferecer presentes como prémio do bom comportamento das crianças durante o ano, à semelhança da tradição associada a São Nicolau.
São Nicolau, ou Santa Claus (Sinter Klaas)
Autor desconhecido, c. 1880
As festas do solstício celebravam também a passagem de um ciclo agrícola. Já no Egipto antigo há registos que, por esta altura, quando Rá começava a recuperar, se enfeitavam as casas com ramos de palmeira, cujo verde persistente simbolizava o triunfo da vida sobre a morte. No norte da Europa, os druidas celtas também decoravam seus templos com ramos perenes como um símbolo da vida eterna. Também os Romanos, durante a Saturnalia, festival em honra de Saturno, o deus da agricultura, e que antecedia o solstício de inverno e marcava o fim do ano agrícola e a passagem para o novo, decoravam as casas e os templos com abetos e ramos verdes. Em Portugal, no mosteiro cisterciense de Alcobaça, no século XV, na véspera de Natal, era costume suspender na zona do altar, ramos de loureiro com laranjas vermelhas em que se inseriam candeias (Gandra, 2007; Serrão, 2016, 23 dez.).
O azevinho, cujos poderes simbólicos e mágicos remontam ao paganismo pré-cristão, era usado como protetor contra os espíritos do mal, sendo costume entre os romanos trocarem oferecer ramos deste arbusto juntamente com velas de cera, representando o regresso da luz (Leite, 2006, p. 105). O cristianismo associou-lhe novos sentidos: o azevinho terá ocultado o Menino dos soldados de Herodes, durante a fuga para o Egipto; tornou-se um símbolo cristológico que associa o vermelho ao sangue e as folhas espinhosas ao sofrimento da Paixão de Cristo.
Embora todas estas tradições tenham raízes na época medieval, por vezes, mantendo crenças e celebrações do mundo pagão, ganharam um forte incremento no século XV, através da nova perspetiva teológica formulada por Martinho Lutero (1483-1546) e centrada na sacralidade da vida familiar (a “boa família”), em confronto com a espiritualidade degradada das instituições religiosas.
A festa do Natal passa a ser uma festa da família, vivida no espaço doméstico do lar e no contexto da devoção privada. Lutero aboliu o jejum do Advento e, por conseguinte, o pretexto da distribuição dos presentes às crianças no dia de São Nicolau, transferindo-o para o dia de Natal, passando a ser o Menino Jesus a distribuí-los. Além disso, segundo a tradição, Lutero terá sido surpreendido uma noite com o espetáculo das estrelas a cintilar através da folhagem numa floresta e, querendo reproduzir a cena para a família, ergueu uma árvore na sala e enfeitou os ramos com velas acesas. A partir de então, em terras germânicas, generalizou-se o costume de trazer para dentro de casa um abeto que era então enfeitado com maçãs, bolachas, doces, fitas de ouropel e flores de papel colorido (Perry, 2010, p. 32).
Adão e Eva
Lucas Cranach o Velho (1472-1553), 1526
Londres, The Courtauld Gallery
Na sequência de uma tradição tardo-medieval, nas vésperas do dia de Natal, as igrejas renanas costumavam encenar os Jogos do Paraíso, centrados na história da criação e da queda de Adão e Eva, como contexto preparatório para o acontecimento primordial do nascimento de Cristo e da epifania. Nestas representações, as árvores do paraíso eram decoradas com maçãs vermelhas, o que poderá estar na origem do hábito de enfeitar a árvore com maçãs, posteriormente transformadas em bolas coloridas, e luzes. Na simbólica cristã, as maçãs representavam o pecado original e as tentações, enquanto as velas aludiam a Jesus Cristo como luz do mundo. Por seu turno, as flores e, em particular, as rosas, referem-se ao novo ramo que surge do tronco de Jessé, segundo a profecia cristológica de Isaías (Is. 11, 1).
A partir do século XIX, o arranjo da árvore torna-se um elemento fulcral das celebrações natalícias na Alemanha. “The high point of German Christmas was clearly Christmas Eve, when families gathered around the tree and brought heaven down to earth. Yet the Christmas mood expanded out beyond down to earth.” (Perry, 2010, p. 47) No Reino Unido, o príncipe Alberto, alemão casado com a rainha Victoria, introduziu o costume da árvore de Natal na corte vitoriana, em 1840.
Christmas tree at Windsor Castle
In: Illustrated London news (Supplement). (1848, Dec.).
A difusão de gravuras representando a família real inglesa em torno da árvore contribuiu para a crescente popularidade desta tradição, primeiro no mundo anglo-saxónico, ganhando rapidamente toda a Europa e os Estados Unidos, embora a sua implantação tenha sido mais lenta em zonas de tradição católica.
A festividade em torno do Menino Jesus e do presépio tende, em certa medida, a ser ultrapassada pela folclorização dos motivos pagãos da festa do solstício, mesmo se cristianizados: a árvore de Natal, o Pai Natal, a troca de presentes, o azevinho, as bolas coloridas e as luzes.
Cânticos e danças à volta da árvore de Natal
In: Overbeek, H. J. (1877). De kerstboom en andere verhalen. Haarlem: I. de Haan.
Koninklijke Bibliotheek, KW BJ Z2141
There is the physical pleasure of ‘good cheer,’ of plentiful eating
and drinking, joined to, and partly resulting in, a sense of goodwill
and expansive kindliness towards the world at large, a temporary
feeling of brotherhood of man […]. Here perhaps we may trace the
influence of the Saturnalia, with its dreams of the age of gold.
(Miles, 2011, 359)
O anseio de riqueza, a expetativa da boa colheita associada à celebração do solstício, traduz-se no tão citado consumismo das compras, na abundância de doces iguarias, na euforia das luzes… Há, subjacente a este fenómeno, uma síntese da cultura ocidental e o sincretismo de várias e ancestrais crenças religiosas. Apesar dos regionalismos que configuram estas festas, que alteram a essência religiosa em torno do nascimento de Cristo, o Natal é a festa universal, com múltiplas perspetivas e significações.
Tudo com luzes, muitas luzes, o vermelho do azevinho e o verde de um ramo de pinho…".
Referências bibliográficas:
Bowler, G. (2000). The world encyclopedia of Christmas. Toronto: McClelland & Stewart.
Federer, W. J. (2002). There really is a Santa Claus: The history of Saint Nicholas & Christmas holiday traditions. St. Louis, MO: Ameriserch, Inc.
Gandra, M. J. (2007). Portugal sobrenatural: Deuses, demónios, seres míticos, heterodoxos, marginados, operações, lugares mágicos e iconografia da tradição lusíada. Lisboa: Esquilo.
Leite, L. R. (2006). Saturnais: Tempo de presentes. In A. T. B. Vieira, & A. L. Teixeira (Ed. lits.), Intertextualidade e pensamento clássico: Anais da XXV Semana de Estudos Clássicos (pp. 103-108). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Miles, C. A. (2011). Christmas customs and traditions, their history and significance. New York: Dover Publications.
Perry, J. (2010). Christmas in Germany: A cultural history. Chapel Hill: University of North Carolina Press.
Senn, F. C. (2012). Introduction to Christian liturgy. Minneapolis: Fortress Press.
Serrão, V. (2016, 23 dez.). O pinheiro da festa do Natal nas suas reminiscências, encantações e equívocos. Correio do Ribatejo. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/vitor-serr%C3%A3o/o-pinheiro-da-festa-do-natal-nas-suas-reminisc%C3%AAncias-encanta%C3%A7%C3%B5es-e-equ%C3%ADvocos/1294987450522740
Simpson, J., & Roud, S. (January 01, 2000). A dictionary of English folklore. Oxford; New York: Oxford University Press
Fontes das imagens:
Many happy returns of the day:
https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/originals/6c/9e/ca/6c9ecaa2510ea0480c919cf42195a08b.jpg
Santa Luzia: https://en.wikipedia.org/wiki/Saint_Lucy’s_Day#/media/File:Ad%C3%A8le_S%C3%B6derberg_-_Christmas_card.jpg
Old Father Christmas: https://en.wikipedia.org/wiki/Christmas#/media/File:FatherChristmastrial.jpg
São Nicolau, ou Santa Claus: http://cdn.history.com/sites/2/2013/12/old-fashioned-santa-claus.jpg
Adão e Eva: http://courtauld.ac.uk/wp-content/uploads/port/ol/P-1947-LF-77-tif-10575.jpg
Windsor Castle: https://rivertonhistory.com/wp-content/uploads/2016/11/caldecott-old-christmas1.jpg
Cânticos e danças à volta da árvore de Natal: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/07/Woonkamer_vol_keurig_geklede _kinderen_die_bij_de_kerstboom_dansen.jpg